O desinteresse acumula-se à minha volta
como as camadas seculares
no tronco de uma sequóia.
Fico imune a queixinhas.
Lavo sozinho a minha roupa.
A minha língua está a ganhar uma espessura lenhosa.
No lugar do grito,
uma greta.
Mãos nos bolsos,
bico calado.
Evito vitrinas e espelhos.
Tenho medo que a verdade
me possa desfigurar o rosto.
 
Golgona Anghel, in Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho

 Passo os dias desorientada.

Pronuncio palavras sem peso.
Vivo numa escuridão cega.

Careço de rumo na vida.

Sobre mim paira monstruoso,
como um novo pássaro enorme e negro,
o resto da noite.

Hannah Arendt 


The heart of saturday night


Noites. Demasiadas noites,
sobre um cinzeiro repleto
onde os nomes dos amigos que
não tinhas deixaram de caber.

E, no entanto, parecia tão fácil.
O acaso de uma boleia
que te pusesse à mercê de um charro
e das piores companhias.
Quase gostavas do abandono
que cerzia solidão e solidão,
entre esses que bebiam
por cima de escuros degraus,
parados num arco como nunca viste.

Desceste, voltas a descer com eles,
para a mesma áspera certeza.
Nomes que naufragavam,
evocações inúteis. A casa
que mais querias foi sempre essa:
o esquecimento.


Manuel de Freitas 


Love me tender


Estou cansado de pessoas.
Contudo, sentado ao balcão
e sua garrida mini-saia, Daisy
insiste em chorar sobre a quinta imperial.

Ainda bem que neste bar
não são admitidos pessoanos
(seria concorrência desleal,
convenhamos). E contudo Daisy
chora, esconde o rosto em lenços
de papel expressamente concebidos
para atenuar o desamor
e precaver a melancolia atípica.

Daisy chora, chora - e eu,
que nem disso sou capaz,
prometo a mim mesmo
deixar de sair à noite e começar
a escrever poesia metafísica.


Manuel de Freitas 

A insustentável crueldade do corpo


O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
Jorge Sena

Eu sei mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. [...]

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer filas para pagar. E pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata de produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas de mais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma, para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto se acostumar, se perde em si mesma.

Marina Colassanti
In Reunião técnica sobre recursos instrucionais na formação profissional. São Paulo: Cenafor, 1985.

Se eu fosse a ti amava-me

 

Se eu fosse a ti amava-me, telefonava,
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum mas a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.
Juan Vicente Piqueras, in Instruções para Atravessar o Deserto

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tento tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst 

De amor nada mais resta que um Outubro

e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia

Inventário

Moram no teu corpo as palavras

mais belas, todas as que eu digo e todas
as que eu calo, as que vivem na pura
transparência do dia e as que se ocultam
sob o véu da noite, as que tu dizes
quando os olhos se fecham, as que segredas
num intervalo de conversa, as que se abrem
como a rosa, quando o amor a desperta,
e as que ficam húmidas como a madrugada
em que uma promessa nasce.
Dispo o teu corpo dessas palavras, e
arrumo-as nas gavetas límpidas da memória,
na boca em que um beijo se guarda, nas mãos
que procuram outras mãos, nos ombros nus,
na suavidade de um adeus, nos cabelos que correm
pelas costas como onda na vertigem
da praia, nos braços desenhados na simetria
de um abraço, no rosto que se abandona
numa entrega ao desejo que o procura, nos dedos
soltos à lentidão da língua que os saboreia.
E soletro as palavras mais belas que moram
no teu corpo, contando em cada sílaba os dias
que faltam para te ver. Nuno Júdice

Chamam-lhe amor

 


Há que dar às coisas nomes curtos e simples,
para que a palavra nos venha aos lábios
obedientemente canina,
mas o certo
é que lhe podíamos dar um outro nome
- qualquer um -
Boby, Tejo ou Lassie, fora o amor uma cadela
parida com as tetas maceradas a roçar o chão.
Qualquer nome lhe daríamos, ao amor
e o resultado seria sempre o mesmo:
Um ganido tímido
a morder-nos de cio o coração da noite

Rita Taborda Duarte

Alguns gostam de poesia

 

 Alguns –

ou seja nem todos.

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.

Sem contar a escola onde é obrigatório

e os próprios poetas

seriam talvez uns dois em mil.

 

Gostam –

mas também se gosta de canja de galinha,

gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xaile velho,

gosta-se de fazer o que se tem vontade~

gosta-se de afagar um cão.

 

De poesia -

mas o que é isso, poesia.

Muitas respostas vagas

já foram dadas a essa pergunta.

Pois eu não sei e não sei e agarro-me a isso

Como uma tábua de salvação.

 

Wislawa Szymborska

crónica dos dias maus

Hoje, mais demorada do que nunca, veio a morte vender ao meu limiar. Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria deles, por elogio, e não se importava que eu a visse. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que me mostrava; mas para que pelo que mostrava, a quisesse a ela.
(...)
O apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com suave gesto o desligou. "O teu lar", disse, " não tem lume: para que queres tu ter um lar?" "a tua casa", disse, "não tem pão: para que te serve a tua mesa?" "A tua vida", disse, "não tem quem a acompanha: para que te seduz a tua vida?"
(...)
"O amor que me tem", ela disse," não tem paixão que consuma, ciúme que desvaire; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa, o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa."

Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera
Livro do Desassossego 

É Isto o Amor

 


Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Nuno Júdice

Uma paciência selvagem

 

É por isso que quero falar contigo agora. (…)

Tem de haver aqueles entre os quais nos possamos sentar e chorar e mesmo assim sermos considerados guerreiros (…). Penso que julgaste não haver nenhum lugar como esse para ti, e talvez não houvesse nenhum então, e talvez não haja nenhum agora; mas teremos de o fazer, nós que queremos o fim do sofrimento, que queremos mudar as leis da história, se é que não queremos entregar-nos.

Adrienne Rich

 



Primeiro foram as mãos que me disseram
que ali havia gente de verdade
depois fugi-te pelo corpo acima
medi-te na boca a intensidade
senti que ali dentro havia um tigre
naquele repouso havia movimento
olhei-te e no sol havia pedras
parámos ambos como se parasse o tempo
parámos ambos como se parasse o tempo
é tão difícil encontrar pessoas assim bonitas
é tão difícil encontrar pessoas assim bonitas
atrevi-me a mergulhar nos teus cabelos
respirando o espanto que me deras
ali havia força havia fogo
havia a memória que aprenderas
senti no corpo todo um arrepio
senti nas veias um fogo esquecido
percebemos num minuto a vida toda
sem nada te dizer ficaste ali comigo
sem nada te dizer ficaste ali comigo
é tão difícil encontrar pessoas assim bonitas
é tão difícil encontrar pessoas assim bonitas
falavas de projectos e futuro
de coisas banais frivolidades
mas quando me sorriste parou tudo
problemas do mundo enormidades
senti que um rio parava e o nevoeiro
vestia nos teus dedos capa e espada
queria tanto que um olhar bastasse
e não fosse no fundo preciso
queria tanto que um olhar bastasse
e não fosse preciso dizer nada
é tão difícil encontrar pessoas assim bonitas
é tão difícil encontrar pessoas assim pessoas.

Pedro Barroso
(28 de novembro de 1950 - 16 de março de 2020)

Plano de evasão


Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado
que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras
e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários
e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite –
aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,
não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés
e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo
que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto
o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:
os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio
e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral

Poema dum funcionário cansado



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa, in VIAGEM ATRAVÉS DUMA NEBULOSA (Ática, 1960); in OBRA POÉTICA I (Assírio & Alvim, 2018)

não quereis celebrar comigo?



não quereis celebrar comigo
aquilo que moldei
numa espécie de vida?
modelo nunca o tive
na babilónia nascida
não branca e uma mulher
o que tentei eu ser, senão eu mesma?
nesta ponte me fiz
entre o barro e o brilho das estrelas
a minha mão sustendo firme a minha outra mão
vinde celebrar isto comigo
todos os dias alguém tentou matar-me
e fracassou

Lucille Clifton
Tradução de Ana Luísa Amaral


Do amor



Ficamos deitadas debaixo dos lençóis
depois de fazer amor, falando
da solidão
aliviada por um livro
revivida num livro
de tal forma que nessa página
o seu coágulo a sua fissura
possam aparecer
palavras de um homem
em dor
uma palavra nua
entrando no coágulo
mão que agarra
através das barras:
libertação
O que acontece entre nós
tem acontecido durante séculos
sabemo-lo pela literatura
ainda acontece
ciúme sexual
mão precipitada
cama desfeita
secura na boca
depois do ofegar
há livros que descrevem tudo isto
e são inúteis
Entras pela floresta atrás de uma casa
aí, nesse país
encontras um templo
construído há mil e oitocentos anos
entras sem saber
onde é que entras
assim é connosco
ninguém sabe o que pode acontecer
embora os livros digam tudo
queima os textos dizia Artaud

Adrienne Rich
Tradução de Ana Luísa Amaral 

As gavetas


Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

Pedro Mexia, in DUPLO IMPÉRIO (Ed. de Autor, 1999)


Conta-mo outra vez

Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me outra vez que o casal
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam beijando-se cada noite.
Conta-mo mil vezes, por favor:
é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista

Os revolucionários

Temos vinte anos e queremos
mudar o mundo desde a base: é assim
que tudo avança – proclamamos.
Não temos certezas
mas dúvidas tão pouco – a verdade
está do nosso lado e nós sabemos disso.
Nem todos nos entendem – nossos pais
continuam tão reaccionários como sempre
e os avós dizem asneiras
nos jantares de família.
Não conseguem entender os sacrifícios
que o futuro exige de nós
 – a heroicidade é a pátria dos jovens.
A estupidez também.
A nossa revolução:
estupidez com boas intenções.

Rocío Acebal Doval

do amor nada mais resta que um outono


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia, in “Poesia Completa”

duas gotas de suor


I
Há alguém no mundo, só não sei onde,
ou até sei, mas é melhor esquecer,
que me despe apenas com o olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder sob o duche.
Alguém com quem se torna inevitável
eu suar num iglu.


II
Choro quando não estás, suo contigo.
O suor e o pranto são iguais,
tenazes e salgados
tal o mar dos meus sonhos e o oceano
inabarcável dos meus pesadelos.
Não peço muito, mas gostava de
suar um pouco mais e chorar menos.



Amalia Bautista, estou ausente, averno 2013